sábado, 4 de dezembro de 2010

Eu sou o Rio e rio à toa

Quando nasci eu fui embalado por um anjo, meio negro e meio índio, ao som de samba e marchinhas de carnaval. Minha mãe bem que cantava belas cantigas de ninar, mas meu pai, sempre que me pegava no colo, se punha a marchar.

Melhor militar que sambista marchava de um lado ao outro da sala cantando músicas de carnaval.

Início da década de 70. Anos cruéis da ditadura militar. Isto não era assunto para crianças. Muito menos na casa dos Sá. Os debates se davam em torno de quem era melhor: Seria a Portela, defendida por meu irmão Mário, ou a Salgueiro, de meu pai? Eu prestava atenção e não entendia nada. Não sabia do que falavam.

Descobri no carnaval de 1973, quando meu pai me levou para assistir pela primeira vez o desfile de escolas de samba, na Avenida Presidente Vargas.

Era menino e fiquei encantado com tantas luzes coloridas, tantas fantasias e alegorias. A avenida toda enfeitada, desde os gigantes cavalos do carrossel na concentração, aos palhaços e arlequins presos por cabos distribuídos sobre a pista de desfile. As arquibancadas de madeira sobre tubos de ferro montadas semanas antes balançavam no ritmo das baterias das escolas. - São seguras! - Garantia meu pai.

O Salgueiro trouxe homenagem a Eneida Moraes e seus bailes de pierrôs, a Portela trouxe “Passárgada, o amigo do Rei”. Belíssimas!

A campeã, Mangueira, mostrou as “Lendas do Abaeté”. Mas a que mais me agradou foi o Império Serrano, vice-campeã com “Viagem Encantada Pindorama Adentro”.

Curupiras, jacarés, cobras, tatus, sacis. Tudo fervilhando diante de meus olhos e na minha imaginação. Justo no ano que eu lera “As Aventuras de Tibicuera”, de Érico Veríssimo.

Muito verde, muito brilho. Mulheres seminuas, e um bom samba, cantado por Marlene:

Venha ver, no Império minha gente
Um navegante procurando Upabuçu
Ansiosamente
No pavão misterioso
Vi a sereia do mar
Em Pindorama coisas lindas
Até o boitatá
Oxóssi, rei da mata,
Fez Guaraci aparecer
Numa jangada segui o Saci Pererê
Iererê, rê rê
Como rema o Saci Pererê
Iererê, rê rê
Só remava o Saci Pererê
Quando Jaci surgiu
Enfeitiçando o rio mar
Iara me levou
Sob o clarão do luar
Na lagoa dourada de beleza sem par
As flores conversavam
Tudo era encantado
Naquele lugar
Foi assim que encontrei
O reino encantado que procurei”

Achei que a minha escola seria o Império Serrano, mas nos ano seguintes vi a força e a beleza do Salgueiro. Campeão de 1974 e 1975. Entendi as bases do fanatismo do meu pai. Ele gostava de coisas impecáveis, organizadas, primorosas. Assim é o Salgueiro.

No ano seguinte abri minha caixinha da maldade ao me divertir quando o Salgueiro perdeu o aguardado tricampeonato para a campeã inédita Beija-Flor de Nilópolis. Descobri que gosto de observar decepções coletivas. Confessem, vocês também! É fantástico prazer de virar um jogo no último minuto dos acrescimos! Torcida rival da euforia ao silêncio. Estilo gol do Pet contra o Vasco em 2001. Flamengo tri.

Voltando a 1976, eu ria do preconceito contra o pessoal da Baixada Fluminense, que “invadiu” o Rio mostrando  “Sonhar Com Rei Dá Leão”. No ano seguinte foi bi, e depois tri.

Engraçado esta fixação por três campeonatos seguidos que a gente tem. Deve ser por conta da conquista definitiva da derretida taça Jules Rimet, em 1970, pela seleção de futebol. Bicampeonatos são mal comemorados. Desce imediatamente sobre os ombros dos vencedores a pressão de conquistar o tri. E o fracasso condena o bicampeão ao esquecimento.

O fato é que minha família passou a odiar a Beija-Flor. E eu gostava e, em silêncio, me divertia, sarcasticamente, ao ouvir cada comentário desdenhoso. A verdade é que Joãosinho Trinta e Laíla, vindos do Salgueiro, levaram a criatividade e a organização para Nilópolis.

Ano após ano eu ia descobrindo e gostando de novas escolas, dos fatos que ocorriam na avenida e fora dela.

Até o início dos anos oitenta as músicas em língua inglesa dominavam as rádios. Alguns artistas brasileiros eram conhecidos, mas suas músicas pouco executadas, seus discos pouco vendidos. Fugiam desta regra os discos de Roberto Carlos e o disco anual das escolas de samba, muito aguardado nos meses de novembro. Todos queria passar a virada do ano cantando o samba de suas escolas preferidas. Decorar letra e melodia o mais rápido possível era motivo de orgulho.  E havia bailes de carnaval nos clubes e nas praças. Predominavam marchas antigas e os sambas da atualidade.

Não foi na avenida, contudo,  que um samba enredo mais me emocionou. Foi no Maracanã, em 1979, quando a torcida do Flamengo, comemorando o Tri (fixação!), cantou “Hoje Tem Marmelada”, da Portela 1980. Foi o último grande campeonato da escola de Oswaldo Cruz, dividido com a “encantadora e feliz” Imperatriz Leopoldinense, que mostrou “O Que Que a Bahia Tem” e a Beija-Flor, que com “O Sol da Meia-Noite, Uma Viagem ao País das Maravilhas” seria pentacampeã, não fosse  a contestada primeira vitória da Mocidade Independente de Padre Miguel no ano anterior, com “O Descobrimento do Brasil” derrotando a espetacular Portela com um desfile “Incrível, Fantástico, Extraordinário”.

No ano seguinte, 1981, a Imperatriz Levou o bi com “O Teu Cabelo Não Nega”. Lembra? É porque não foi tri.

Em 1984 a Portela voltou a vencer o desfile de domingo, mas perdeu o supercampeonato para a Mangueira, vencedora do desfile de segunda-feira. Era o primeiro ano que o desfile acontecia em duas noites. Também aconteceu a inauguração da Passarela do Samba, na Marquês de Sapucaí.

A divisão em duas noites de desfile se deu após a decadência de outras tradições que desfilavam na mesma avenida. Havia um dia em que blocos de frevo e de embalo faziam a festa. Outro dia era destinado aos ranchos e ainda havia a noite das grandes sociedades, que mostravam seus enormes carros alegóricos, deixados depois como herança para as escolas de samba atuais.

Com apenas uma noite para o desfile das escolas de samba, muitas e com muitos componentes, o inevitável sempre acontecia. As últimas escolas desfilavam sob Sol escaldante de meio-dia, para um público que beirava as 24 horas de permanência nas arquibancadas, visto que as pessoas chegavam cedo, horas antes do desfile, para conquistarem os melhores lugares. Assim aconteceu em 1982, último campeonato entre as grandes escolas do valente Império Serrano, com seu “Bumbum Praticubum Prucurudum”.

A construção do Sambódromo veio acabar de vez o monta-demonta das arquibancadas de madeira, que fazia do trânsito no Centro do Rio um inferno. Sua estrutura de concreto, seus camarotes construídos para servirem como salas de aula no período entre carnavais.  Idéias do antropólogo Darcy Ribeiro, vice-governador do estado. Ele idealizou também a Praça da Apoteose, construida mais larga que a Passarela, onde as escolas de samba desembocariam num imenso baile.

A Apoteose nunca cumpriu este papel. Mas as idéias de Darcy Ribeiro eram mesmo sempre apoteóticas, otimistas. Gostaria de compreendê-lo melhor para acreditar num bom futuro para o Brasil, assim como ele acreditava, por conhecer tão bem a sua formação e de seu povo.

O Sambódromo acabou com outro grande problema. As escolas de samba costumavam “atravessar o samba”.

A Física explica:

Com um sistema de som mal elaborado, os componentes das primeiras alas das escolas chegavam a um determinado ponto do desfile onde o que cantavam era defasado do carro de som, da bateria e do restante da escola, que vinha mais atrás. O som, que se propaga a 340 metros por segundo, chegava dois segundo mais tarde na outra ponta da avenida, com cerca de 700 metros. E é significativa esta diferença entre os trechos das músicas cantadas pelas alas iniciais e as últimas alas. As batidas das baterias acabavam perdidas no caos sonoro, chegando ao ponto de algumas escolas pararem de cantar durante o desfile para tentar corrigir este erro.

No ano anterior à inauguração do Sambódromo eu presenciei um momento sensacional da história do carnaval. A Caprichoso de Pilares subira para o grupo A empolgadíssima, tendo vencido no grupo B com “Moça Bonita Não Paga”, após disputar, em 1982, com escolas que trouxeram para a avenida uma das melhores safras de sambas enredo.

Pilares começou seu desfile com muita garra, cantando “Um Cardápio à Brasileira”, quando faltou luz na Marquês de Sapucaí.

Alguns segundos se passaram e componentes da escola e arquibancadas perceberam que, sem som nem iluminação, a escola estaria fadada a descer novamente para o segundo grupo. Então todos começaram a cantar alto e a pular. O que seria um momento lamentável virou um show do povo e da escola. Um desfile no escuro de silhuetas cantantes. Sensacional e emocionante.

Este foi o motivo para, no ano seguinte, homenageando Chico Anísio, a Caprichosos cantar em seu samba:

“Sorria meu povo
Sorria o Chico Rei chegou
Neste Palco todo iluminado
Que um dia
Por pecado
Se apagou”...

Assim iniciou a Era Sambódromo. Palco sem ornamentos, por muitos criticado pelo fato de permitir a visão pelas arquibancadas de toda a avenida, o que acaba quebrando a euforia da platéia que antes vibrava com a passagem de cada setor das escolas, no tempo das arquibancadas de madeira e suas ornamentações, que só permitiam que as alas e alegorias fossem vistas quando estavam passando bem em frente de cada setor.

Em 1985 foi criada a Liga das Escolas de Samba – LIESA – que organizou e passou a explorar comercialmente o desfile. Comandada por contraventores, aumentou a desconfiança sobre manipulações de resultados. Mas justiça seja feita: todas as escolas campeãs foram competentes e por isso mereceram os campeonatos.
Desde a vibrante Mangueira que, com sua empolgação, oculta a feia combinação, quase sempre inevitável, entre as cores verde e rosa. Popularíssima, conquistou alguns campeonatos. Depois vieram os, sem dúvida, belos desfiles técnicos da Imperatriz, que lhe deram um tricampeonato, mas passaram a falsa impressão de frieza da escola.

Repito: Falsa frieza. É que a escola descobriu uma fórmula, naquele momento eficiente, de aliar sambas de bela melodia com o canto empolgado dos seus componentes e principalmente uma harmonia impecável e fantasias cuidadosamente elaboradas. Além da espetacular comissão de frente comandada por Fábio de Mello, vencedora de vários prêmios. Só que a empolgação não passava para as arquibancadas, que assistiam em silêncio os belos desfiles.

Levantar as arquibancadas só uma escola conseguiu: Salgueiro, com “Peguei Um Ita No Norte”

A Beija-Flor contra-atacou, superando a Imperatriz ao acrescentar mais garra à técnica e estimular um pouco mais as frias arquibancadas. Ganhou vários campeonatos recentes.
Eu, ritmista da escola, muitas vezes me pego analisando com uma visão antropológica as características destas duas escolas. Isoladas em suas comunidades, as pessoas participam com grande envolvimento e orgulho dos eventos e ensaios.

Mas quando surgem aquelas maravilhosas mulatas sambando diante da ala das cuícas tudo muda...

“Teus sinais
Me confundem
Da cabeça aos pés
Mas por dentro
Eu te devoro,
Teu olhar
Não me diz exato
Quem tu és
Mesmo assim
Eu te devoro...”

... e a visão antropológica se transforma, de maneira inevitável, em visão antropofágica.

“Eu sou o Rio e rio à toa...”

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