segunda-feira, 23 de junho de 2014

Porque não me deixaste adormecido?

Vinícius de Moraes um dia sentiu, percebeu e avisou aos menos sensíveis, como eu:

“São demais os perigos desta vida 

Pra quem tem paixão principalmente 
Quando uma lua chega de repente 
E se deixa no céu, como esquecida
E se ao luar que atua desvairado 
Vem se unir uma música qualquer 
Aí então é preciso ter cuidado 
Porque deve andar perto uma mulher 
Deve andar perto uma mulher que é feita 
De música, luar e sentimento 
E que a vida não quer de tão perfeita 
Uma mulher que é como a própria lua: 
Tão linda que só espalha sofrimento 
Tão cheia de pudor que vive nua." 

Um desses perigos é quando a paixão é avassaladora, quando a mulher passa diante de nós como se estivesse montada no cavalo veloz das raras oportunidades e a gente, incompetente, não consegue agarrá-la, vendo passar velozmente o último fio dos seus longos e belos cabelos. E, atônito, a gente passa a perambular tentando compreender o significa tudo isso, para onde foi, e, desejando fazer perdurar, ao menos perpetuar registros na esperança que os futuros amantes citados por Chico (O Buarque) encontrem, mesmo que num tempo distante, os tais fragmentos de cartas, poemas, mentiras, retratos, em vestígios de estranha civilização, esquecidos no fundo de armário, em gavetas entulhadas de lembranças desbotadas ou quem sabe em pen drives, velhos HDs ou em memórias de celulares, nos descartes da vida. 
Gostaria que todo o amor pudesse ser guardado em uma garrafa fechada hermeticamente e lançada ao mar, para a sorte de preencher a vida de quem a encontrasse, como um gênio capaz de satisfazer o desejo do fim da solidão. Mas amores são grandes demais para caberem em garrafas. Melhor que fiquem selados dentro dos corações de quem ama e que estes amantes sejam eles mesmos suas próprias garrafas e que se lancem ao mundo, fazendo dele seu mar e encontrem, quem sabe, a terra onde os sonhos serão reais e a vida não.
Viver não é preciso.



"Por que me descobriste no abandono
Com que tortura me arrancaste um beijo
Por que me incendiaste de desejo
Quando eu estava bem, morto de sono
Com que mentira abriste meu segredo
De que romance antigo me roubaste
Com que raio de luz me iluminaste
Quando eu estava bem, morto de medo
Por que não me deixaste adormecido
E me indicaste o mar, com que navio
E me deixaste só, com que saída
Por que desceste ao meu porão sombrio
Com que direito me ensinaste a vida
Quando eu estava bem, morto de frio
"

sexta-feira, 20 de junho de 2014

É só balançar que a corda me leva de volta pra ela

Sandra, a música e sua história, de Gilberto Gil, por ele mesmo:



Maria Aparecida, porque apareceu na vida
Maria Sebastiana, porque Deus fez tão bonita
Maria de Lourdes
Porque me pediu uma canção pra ela

Carmensita, porque ela sussurou: "Seja bem-vindo"
(No meu ouvido)
Na primeira noite quando nós chegamos no hospício
E Lair, Lair
Porque quis me ver e foi lá no hospício

Salete fez chafé, que é um chá de café que eu gosto
E naquela semana tomar chafé foi um vício
Andréia na estréia
No segundo dia, meus laços de fita

Cintia, porque, embora choque, rosa é cor bonita
E Ana, porque parece uma cigana da ilha
Dulcina, porque
É santa, é uma santa e me beijou na boca

Azul, porque azul é cor, e cor é feminina
Eu sou tão inseguro porque o muro é muito alto
E pra dar o salto
Me amarro na torre no alto da montanha

Amarradão na torre dá pra ir pro mundo inteiro
E onde quer que eu vá no mundo, vejo a minha torre
É só balançar
Que a corda me leva de volta pra ela:
Oh, Sandra


© Gege Edições Musicais ltda (Brasil e América do Sul) / Preta Music (Resto do mundo)

"Em 94, eu estava dando uma entrevista coletiva em Curitiba, quando uma moça entrou e disse: 'Não se lembra de mim?' Eu fiquei olhando, olhando, e ela então gritou: 'Andréia na estréia!' E eu: 'Claro!' Andréia era a menina que eu tinha conhecido, em 76, na passagem do show dos Doces Bárbaros pela cidade (antes de seguirmos para Florianópolis, onde eu fui preso por porte de maconha e posto em tratamento ambulatorial numa clínica, episódio em que a canção é baseada). Tínhamos ficado juntos na ocasião, e ela que me levou a um armarinho para comprar as fitas com que me enlaçou os cabelos trançados. Desde então nunca mais tínhamos nos reencontrado."

*

"Todas as meninas mencionadas em Sandra foram personagens daqueles dias que eu vivi entre Curitiba e Florianópolis. Maria Aparecida, Maria Sebastiana e Maria de Lourdes me atenderam no hospício durante o internamento imposto pela justiça enquanto eu aguardava o julgamento. A de Lourdes me falava a toda hora: 'Você vai fazer uma música pra mim, não vai?' 'Vou'. Carmensita: essa - foi interessantíssimo -, logo que eu cheguei, ela veio e me disse, baixinho: 'Seja bem-vindo'. Lair era uma menina de fora, uma fã que foi lá me visitar. Salete era de lá: 'Meu café é muito ralo', me falou. 'É exatamente como eu gosto, chafé', respondi. Cíntia: também de Curitiba, como Andréia. Quando passamos pela cidade, me levou ao sítio dela uma tarde; foi quem me deu uma boina rosa com a qual eu compareceria ao julgamento mais adiante, em Florianópolis, e com a qual eu apareço no filme Os Doces Bárbaros. Ana: ficou minha amiga até hoje; de Florianópolis. E Dulcina, que era a mais calada, a mais recatada de todas na clínica, a mais mansa - era como uma freira -, foi a única que um dia veio e me deu um beijo na boca.

"Sandra, citada no final da letra, era minha mulher, que preferiu não ir a Florianópolis e com a qual eu associei a idéia do hexagrama da torre, tirado no I Ching, um dos meus livros de cabeceira naquele período: a que tomava conta de tudo; onde eu estivesse, o seu olhar espiritual me acompanharia; seu ente se espraiaria, estendendo-se por todas as mulheres com quem eu convivesse. A ela as mulheres citadas na letra remetiam por representarem o feminino, a minha sustentação naquele momento.

"Mas o que ninguém sabe, e que não se revela de nenhuma maneira na canção - o seu lado oculto -, é que há duas Sandras, a que é mencionada no fim e a do título, que não se refere à Sandra com quem eu era casado, mas a uma menina linda, maravilhosa, também chamada Sandra, que tietava o Caetano em Curitiba, amiga da Andréia - que me tietava."

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Eu prefiro ser uma metamorfose ambulante



“O preço da liberdade é a solidão.”

Pensei e tenho afirmado a frase acima, já publiquei no blog e tenho citado nas conversas das quais participo, quando o tema é “ser livre”.
Estas conversas são frequentes, já que é comum encontrar pessoas em condições semelhantes à minha (separado, solteiro, no Rio de Janeiro, com saúde e poucos ou nenhum dependente financeiro) que lutam ferozmente para preservar tal “liberdade”.

 “Liberdade”. - Aspas por quê? - Porque a minha afirmação é tola e a luta das pessoas é vã.
Chamam de liberdade a possibilidade de utilizarem o próprio tempo e de estarem onde quiserem, sem que laços e compromissos com outra pessoa as limitem. Fecham-se, limitando o conceito de liberdade, prendendo-se a esta restrita visão, o que imediatamente derruba por terra a própria liberdade.

E fazemos isso por toda a vida. Somos assim formados e educados por pessoas que foram formadas e educadas para também serem assim. É isso que sustenta o mundo do jeito do como ele é. É isso que mantém o poder com quem o detém. É isso que nos decepciona quando atingimos metas e objetivos que não foram criados por nós, mas que foram tomados como nosso, para podermos nos sentir seguros, aceitos, integrados. Nunca seremos!

Sempre seremos frágeis, inseguros e sempre ameaçados pela não aceitação e o banimento.

Assim caminha a humanidade.

A liberdade, agora tento expandir minha ideia sobre ela absorvendo um pouco das dicas de Krishnamurti, deve estar associada à revolta, ao questionamento dos conceitos para que se destruam os preconceitos, como aqui esboço de forma tosca, não por ausência de inteligência, mas pela falta de exercício, com o próprio conceito de liberdade.

Enchemo-nos de orgulho ao dizer que somos livres: - “Tenho minha casa, meu automóvel, dinheiro para satisfazer muitos dos meus desejos, e por não estar vinculado a ninguém, posso ir a qualquer lugar, na hora que eu quiser”.

- Ótimo! Mas de nada adianta tudo isso se desejamos sempre ser algo que não somos: Desejamos ser amados pelos amigos, admirados pela sociedade, elogiados pelos nossos chefes. A moeda de troca? Fazer o que eles querem que façamos. Evidentemente o outro age de forma semelhante nas correntes de suas relações. E o mundo gira assim, acorrentado. E nada novo surge e não conseguimos sequer formular idéias para fazê-lo mudar.

A liberdade que procuro agora e na qual acredito é a liberdade ininterrupta da transformação.

E mesmo o Padre Eterno, que nunca foi lá, olhando aquele inferno vai abençoar

Quem ainda não leu o livro e não assistiu ao filme, recomendo Dona Flor e Seus Dois Maridos.

Buscar nas entrelinhas significados belíssimos, como quando Flor arrepende-se de ter pedido a uma mãe de santo que fizesse algo que afastasse dela o espírito de Vadinho. Define sua vontade, ao gritar por ele, impedindo sua partida.

No final a última e clássica cena de Dona Flor saindo da igreja com seus dois maridos, feliz, indicando estar livre do sofrimento causado pela dúvida de que seria ou não adúltera ao amar e sentir prazer também com o espírito do seu finado marido.

Porque todos os sinos irão consagrar.

Nem todos os quebrantos, toda alquimia

E nem todos os santos, será que será




quinta-feira, 29 de maio de 2014

Será uma maldição? Não sei.



A letra da música O que será, composta por Chico Buarque em três versões para o filme Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto, é, entre todos os textos que já li, a mais perfeita descrição da paixão que conheço.
Em à flor da pele, a versão que trata do desejo emocional, mais profundo e dilacerador, direto no coração. Descreve não a ciência ou a consciência, avessas à paixão. Ao contrário, através de perguntas (o que será...?) relaciona todos os efeitos dentro de tantas dúvidas e interrogações, que acompanham todo o sentimento.
Assim, tenta entender:


O que será que me dá que me bole por dentro? Que brota à flor da pele, e que me sobe às faces e me faz corar? E que me salta aos olhos a me atraiçoar? E que me aperta o peito e me faz confessar o que não tem mais jeito de dissimular e que nem é direito ninguém recusar? E que me faz mendigo, me faz implorar? O que não tem medida, nem nunca terá. O que não tem remédio, nem nunca terá. O que não tem receita.

O que será que dá dentro da gente que não devia? Que desacata a gente, que é revelia? Que é feito uma aguardente que não sacia? Que é feito estar doente de uma folia? Que nem dez mandamentos vão conciliar? Nem todos os ungüentos vão aliviar? Nem todos os quebrantos, toda alquimia, que nem todos os santos, será que será? O que não tem descanso, nem nunca terá. O que não tem cansaço, nem nunca terá. O que não tem limite.

O que será que me dá que me queima por dentro? Que me perturba o sono? Que todos os tremores me vêm agitar? Que todos os ardores me vêm atiçar? Que todos os suores me vêm encharcar? Que todos os meus nervos estão a rogar?
O que será que será que todos os meus órgãos estão a clamar? E uma aflição medonha me faz implorar?
 O que não tem vergonha, nem nunca terá. O que não tem governo, nem nunca terá. O que não tem juízo.

Em outro nível o desejo carnal, do sexo, forte e poderoso, pulsando em todos os corpos, desde os mais toscos até os mais santos, é tratado na versão à flor da terra:
O que será que andam suspirando pelas alcovas? Que andam sussurrando em versos e trovas? Que andam combinando no breu das tocas? Que anda nas cabeças, que anda nas bocas? Que andam acendendo velas nos becos? Que estão falando alto pelos botecos? Que gritam nos mercados? Que com certeza está na natureza, será que será? O que não tem certeza, nem nunca terá. O que não tem conserto, nem nunca terá. O que não tem tamanho.

O que será que vive nas ideias desses amantes? Que cantam os poetas mais delirantes? Que juram os profetas embriagados? Que está na romaria dos mutilados? Que está na fantasia dos infelizes? Que está no dia a dia das meretrizes, no plano dos bandidos, dos desvalidos?

...Em todos os sentidos (Significados? Sentidos físicos? Cabem os dois.)?
 Será que será o que não tem decência, nem nunca terá? O que não tem censura, nem nunca terá? O que não faz sentido?

O que será que todos os avisos não vão evitar? Porque todos os risos vão desafiar? Porque todos os sinos irão repicar? Porque todos os hinos irão consagrar? E todos os meninos vão desembestar? E todos os destinos irão se encontrar? E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá olhando aquele inferno, vai abençoar?

O que não tem governo, nem nunca terá. O que não tem vergonha, nem nunca terá. O que não tem juízo.

E ainda a versão especial do amor entre Dona Flor e Vadinho, lindamente cantada por Simone, adequada aos dois personagens, na qual Dona flor inicia questionando o que faz com que Vadinho seja como é (O que será que lhe dá?). Depois questiona, pensando na paixão de um modo geral, conclui, como em todas as versões, que seja o que for, não tem e nem nunca terá governo, vergonha e juízo:

Tema de Abertura do filme Dona Flor e Seus Dois Maridos

E todos os meus nervos estão a rogar

E todos os meus órgãos estão a clamar

E uma aflição medonha me faz implorar

O que não tem vergonha, nem nunca terá

O que não tem governo, nem nunca terá

O que não tem juízo



O que será que lhe dá

O que será meu nego, será que lhe dá

Que não lhe dá sossego, será que lhe dá

Será que o meu chamego quer me judiar

Será que isso são horas dele vadiar

Será que passa fora o resto do dia

Será que foi-se embora em má companhia

Será que essa criança quer me agoniar

Será que não se cansa de desafiar

O que não tem descanso, nem nunca terá

O que não tem cansaço, nem nunca terá

O que não tem limite



O que será que será

Que dá dentro da gente, que não devia

Que desacata a gente, que é revelia

Que é feito uma aguardente que não sacia

Que é feito estar doente de uma folia

Que nem dez mandamentos vão conciliar

Nem todos os unguentos vão aliviar

Nem todos os quebrantos, toda alquimia

E nem todos os santos, será que será

O que não tem governo, nem nunca terá

O que não tem vergonha, nem nunca terá

O que não tem juízo.

domingo, 25 de maio de 2014

Eu sei Que Embaixo Desta Neve Mora Um Coração



Meu tempo é curto e meu mundo é hoje.
 Movo-me, contudo, sem pressa, pois sei que não há objetivo a ser alcançado senão a plena sensação de viver e registrar, em todas as dimensões do meu ser, cada experiência vivida como aprendizado para o meu crescimento.
Sem perder os movimentos por medos de possíveis dores, aprendi que a corrente da vida torna-se prazerosa a quem nela ousa se soltar.
Não espero nada. Criar expectativas significa tentar aprisionar a vida dentro de uma ideia, de um desejo que construímos para não sermos surpreendidos pelo novo, que pode não nos agradar.
Ao acordar, apenas abro os olhos e percebo a luz sobre as coisas e pessoas as quais ela ilumina, como se o Sol quisesse indicá-las para mim, como faz neste momento, iluminado surpreendentemente um belo brilhante que partindo a luz explode em sete cores, revelando então os sete mil amores...


O TEMPO E AS JABUTICABAS
(Texto de Rubem Alves)



Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora. Sinto-me como aquela menina que ganhou uma bacia de jabuticabas. As primeiras, ela chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados.
Não tolero gabolices. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para projetos megalomaníacos.
Não participarei de conferências que estabelecem prazos fixos para reverter a miséria do mundo. Não quero que me convidem para eventos de um fim de semana com a proposta de abalar o milênio.
Já não tenho tempo para reuniões intermináveis para discutir estatutos, normas, procedimentos e regimentos internos.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos.
Não quero ver os ponteiros do relógio avançando em reuniões de 'confrontação', onde 'tiramos fatos a limpo'.
Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário geral do coral.
Lembrei-me agora de Mário de Andrade que afirmou: 'as pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos'.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa...
Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade, defende a dignidade dos marginalizados,
e deseja tão somente andar ao lado do que é justo.
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade, desfrutar desse amor absolutamente sem fraudes, nunca será perda de tempo.'
O essencial faz a vida valer a pena.