quarta-feira, 27 de abril de 2011

Vou pra rua e bebo a tempestade

Aprendi com o passar do tempo que vida atropela a saudade, e que fora das fronteiras da memória o passado não volta a lugar algum. Se uma amizade se mantém atravessando o tempo, sentimos em um reencontro o prazer enorme em descobrir que pouca coisa mudou além do cenário e do contexto das nossas vidas. Tudo acontece numa folia de identificação e a sensação de que “parece que foi ontem” surge imediatamente.
De um modo geral o que acontece é o contrário. Há uma grande frustração em perceber que a pessoa que conhecemos no passado não está mais ali. A não identificação é clara e o mal estar, inevitável. Aí a gente fica torcendo para que o encontro seja breve, que cada um siga o seu rumo, em direção ao esquecimento.
Quando as redes sociais surgiram, eu fiquei eufórico ao perceber que poderia, através delas, reencontrar velhos amigos e reativar divertidas amizades da adolescência. Encontrei muita gente, mas aos poucos fui ficando decepcionado com o resultado.
Outro dia encontrei no MSN uma amiga de adolescência, por quem fui apaixonado.  A conversa, bem diferente das do passado, foi um festival de frases feitas, frias e irritantes. No meio da conversa eu já estava pensando em postar no Batuque Meteórico um antigo texto de Luis Fernando Veríssimo. Lembro do mesmo ter sido fartamente lido, aos risos, nas rodas de papo dos anos 80.
Demorei muito tempo até conseguir o texto para repassar para vocês. Estava escondido entre os papéis do passado. Foi parar em uma caixa de papelão entre outros muitos papéis. Não lembro se fui eu quem o guardou, mas um anticlichê demonstra toda a minha aversão aos clichês, apesar de volta e meia a eles recorrer:
Não sei quem guardou o texto impresso na caixa de papelão,
...mas o culpado não foi o mordomo.
 


- Ó Liberato...
- Sou todo ouvidos.
- Gostaria de esclarecer uma coisa.
- Vamos por os pingos nos is.
- Com franqueza.
- Comigo é pão, pão, queijo, queijo.
- Nos conhecemos há anos.
- De longa data.
- Concordamos em muitas coisas.
- Somos feitos do mesmo estofo. Diga-me com quem andas e eu te direi quem és.
- Nos damos bem.
- Unha e carne.
- às vezes, brigamos, por bobagem.
- Dou a mão à palmatória.
- Mas sempre fizemos as pazes.
- Quando um não quer, dois não brigam.
- Confesso que já perdi a paciência com você.
- A perfeição não existe.
- Mas com o tempo me arrependia.
- Temos que dar tempo ao tempo, o mundo dá muitas voltas. Errar é humano.
- Certo. Mas...
- E perdoar é divino.
- Certo. Você também já se irritou com os outros.
- Sou carne e osso. Nunca digas dessa água não beberei.
- Lembro da sua briga com Libório.
- Perdi os cadernos. Se arrependimento matasse, estaria morto.
- E uma vez você quase bateu na Marieta.
- Em uma mulher não se bate nem com uma flor. Mas não sou de ferro.
- Apesar de ser um homem normalmente moderado.
- Tenho os pés no chão. Penso duas vezes antes de agir. Tenho uma paciência de santo.
- A briga com os dois foi pela mesma razão, se me lembro bem.
- Memória de elefante.
- Eles fizeram um comentário sobre você.
- Quem diz o que quer, ouve o que não quer.
- Você ficou magoado, ou tudo já passou?
- Chuva de verão.
- Mesmo porque eles estavam tentando ajudar.
- Não levo desaforo para casa.
- Não era desaforo. Eles estavam chamando sua atenção para um fato de que você talvez não se tenha dado conta. Está claro?
- Como dois e dois.
- As pessoas às vezes não se conhecem. Você se conhece?
- Como a palma da minha mão.
- Mas pode conhecer tudo.
- Entre o céu e a terra há muitas coisas que a nossa...
- Certo! Certo! Você tem que entender que nem sempre a crítica é maldosa.
- Honni soit qui mal y pense.*
- Isso é uma questão de interpretação.
- Tudo é relativo.
- Claro. Você pode ter interpretado mal.
- Estou em paz com minha consciência. Quem não deve não teme. Tenho a consciência tranquila. O tempo dirá. Minha vida é um livro aberto.
- Mas você reconhece que pode ter interpretado mal.
- Tudo é possível neste mundo.
- O Libório e a Marieta podiam ter toda razão.
- Nem tanto ao mar, nem tanto à terra.
- Talvez pudessem ter dito de outra maneira.
- Depois da porta arrombada, tranca de ferro. Depois de entornado o caldo...
- O que eles queriam dizer...
- Querer é poder.
- Certo. Eles queriam chamar sua atenção para esse hábito...
- O hábito faz o monge.
- Pois é. Para o seu hábito de só falar com frases feitas.
- A boca é minha!
- Escute. Não fique brabo outra vez. Deixe eu falar.
- Palavras loucas, orelhas moucas.
- Mas você tem que concordar que...
- Não dou o braço a torcer.
- Você nunca disse uma frase original na vida!
- Nunca é muito tempo. Não devo satisfações a ninguém. Quem sabe de mim sou eu. Os incomodados que se mudem, Vocês são vinho da mesma pipa. Deus é testemunha. A mentira tem pernas curtas. A justiça tarda, mas não falha.
- Calma! Calma!
- Vocês vão ver com quantos paus se faz uma canoa!
- Espere. Desculpe. Está bem, Foi uma grosseria minha. Você tem razão. Se já existem frases feitas, para que inventar outras? Não digo mais nada.
- De boas intenções o inferno está cheio.
- Não fique magoado. Vamos conversar. É conversando que a gente se entende.
- Agora você está falando a minha língua!

Luis Fernando Veríssimo – Conversando

 * (Honni soit qui mal y pense é uma expressão francesa que significa Envergonhe-se quem nisto vê malícia)

2 comentários:

  1. Mauro, acho que os clichês são inevitáveis. Acho que a sua irritação aconteceu mais pela decepção da expectativa que você criou ao reencontrar uma pessoa diferente da que você conheceu. "Não julgue para não ser julgado" rsrsrs Da próxima vez que conversar com você, vou ter mais cuidado (rsrsrs)

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  2. O bom julgador por si julga os outros! Um beijo minha querida!

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